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YARA UM SENTIDO PARA A VIDA E PARA A ARTE

 

Yara Martins de Oliveira iniciou sua trajetória como pintora de maneira convencional, atraída e motivada pela exuberante paisagem paranaense, cenário que lhe foi familiar durante uma boa parte de sua juventude, vivida nas fazendas de sua família. Como aconteceu também a tantos outros artistas de sua geração engajados na busca de formas de expressão condizentes com seu tempo, muito cedo, Yara descobriu sua total incapacidade como artista, de encontrar prazer e realização na simples representação das coisas como aparentemente elas são vistas pelas pessoas. Assim, num daqueles momentos de extrema coragem ( não raros em sua vida) lançou por terra todos os conceitos que havia acumulado no seu aprendizado inicial e partiu em busca de uma forma de manifestação artística, não obrigatoriamente vinculada a chamada realidade objetiva, porém correspondente as sua necessidades interiores de expressão .

                    

O século vinte chega ao seu fim e uma certa timidez muito característica da artista consegue ser vencida. Propõe então uma série de trabalhos, em grande formato, pelos quais sente uma atração irresistível. Essas obras, nas quais trabalha febrilmente num desafio aos seus limites. ao meu ver, se constituem no mais importante passo de Yara na busca dos resultados por ela pretendidos porém ( para ela) ainda um pouco nebulosos. Um grande vigor expressivo e uma permanente evocação dramática podem ser identificados nesta série de pinturas. Para realiza-las a artista dispensou o maior cuidado na elaboração dos espaços, sempre povoados de densa  matéria pictural e nas texturas vigorosas que manipula muito bem. Introduziu discretamente, em perfeita harmonia, desenhos feitos em geral a cabo de pincel, representando letras do alfabeto hebraico que se constituem em orações ancestrais que ela foi cuidadosamente recolher e estudar para finalmente incorporar à obra, atribuindo a mesma, graças a esses componentes, forma e conteúdo nítidos, revelando a ideologia na qual está engajada e que  lhe garante o apoio para seguir pintando. Não satisfeita com os limites impostos pela tela, propõe então objetos que ocupem o centro dos espaços compondo e completando as obras. São espécies de pequenas capelas pintadas com técnica idêntica a usada nas telas que a artista dispõe no ambiente dialogando com as grandes pinturas.  Cobre também as paredes que circundam as obras com materiais que reconhece como compatíveis com o conjunto, envolvendo o ambiente da mostra num mesmo clima. Com a presença de elementos que remetem a simbologia religiosa primitiva Yara pretende encontrar um sentido para sua pintura buscando uma  convergência entre a razão de existir da mesma e a sua preocupação existencial básica que consiste em trabalhar e fortalecer a sua própria fé.

                  

As pinturas de Yara são intencionalmente sóbrias como ela própria, não buscando, em momento algum, repetir objetos ou qualquer outro componente de nosso cotidiano. Mesmo quando se dispõe a tratar superfícies amplas ela o faz com discrição escapando a toda e qualquer intenção espetacular que repele definitivamente.

                 

A análise constante e meticulosa que ela realiza de sua produção somada a capacidade que vem desenvolvendo de encontrar um sentido para sua própria existência tem conduzido a artista a cultivar cada vez mais a introspecção como exercício indispensável para buscar seus objetivos. Uma afinidade com o isolamento e com o trabalho solitário levam Yara a buscar no seu mundo interior (muitas vezes torturado por dúvidas e inquietações) a matéria prima que ela guarda, cuidadosamente encerrada e inviolável, pronta para vir a tona como o seu tesouro pessoal. Mesmo que seja fácil perceber que Yara povoa sua obra com evocações que sinalizam claramente seu caráter místico, sinto em tudo que ela faz um poder que não emana de nenhuma elucubração intelectual e sim é o resultado da procura de uma dimensão cósmica nascida de uma inexplicável força que desde os tempos primitivos eclode incontrolavelmente nos artistas e está contida na própria essência e no exercício da arte .

 

Recentemente Yara passou a sentir uma atração pelos formatos menores que a conduziram a refletir sobre o difícil desafio de desembaraçar a obra de arte de qualquer sinal de uma grandiloqüência que possa encobrir sua verdadeira essência. Ela quer agora transformar seus gritos em sussurros, buscando um alcance mais intimista ao seu trabalho. Para ela parece ser este o caminho mais adequado ao registro de suas emoções que na verdade, mais que qualquer outro objetivo, pretende promover a libertação da artista. Descobre-se herdeira momentânea da "arte povera" revelando desta forma um grande fascínio pelas superfícies descarnadas das telas onde encontra uma singular analogia com os próprios seres humanos desgastados pela vida e pelas suas dolorosas reminiscências.

               

Usando pedaços cortados ou mesmo rasgados de trabalhos anteriores ela reinstala esses fragmentos de experiências já vividas (na forma de colagens) nas novas telas que propõe, provocando um novo ponto de partida e uma visível referência a cadeia do velho e o do novo. Isso conduz a artista a um jogo de que tanto gosta: o do morrer e do renascer, presente em toda a matéria da qual se constitui o universo, simbolizado no fazer artístico no exercício repetido de construir, destruir e voltar a construir, por ela adotado e que em seu entender, simboliza a essência de própria vida. O resultado que Yara pretende obter me parece fortemente relacionado a uma busca obsessiva da transcendência de sua gestualidade no fazer pictórico. Yara faz conviver em perfeita harmonia matérias densas e cheias de sofrimento com  elementos gráficos remotos (sobre os quais já me referi) povoados de sutilezas e mistérios. Realiza a incisão dessas escrituras, cavadas na  textura espessa da pintura com instrumento contundente, fazendo com que adquiram a aparência de cicatrizes urbanas em velhos muros. Em outras ocasiões elas são substituídas por signos caligráficos (grafites) que remetem também, mais uma vez, o espectador a pensar em escritos ancestrais. Tratam-se de revelações  repletas de nostalgia e lembranças onde está presente sua concepção da vida como um eterno refazer do velho em novo, da vivência em experiência que se projeta rumo ao um futuro imponderável indicando a direção a seguir. Curiosamente o próprio atelier da artista, recentemente concluído, foi totalmente construído com materiais reciclados de demolições e me parece uma simbólica afirmação existencial.

              

Neste novo caminho, agora trilhado pela artista, sobre o qual me referi, em que as pinturas são elaboradas a partir de fragmentos de telas antigas posteriormente aplicados como colagens nas novas obras propostas, Yara procura dar a elas uma nova existência e a sua maneira, inserir no processo criativo o sentido de "ressurreição" que procura sempre focalizar. Usando esse próprio fragmento de tela (que posteriormente será colado) como uma espécie de matriz de monotipia ela o entinta e imprime na tela provocando a aparência de uma imagem invertida no espelho. Resultam obras muitas vezes monocromáticas ou pelo menos bastante contidas quanto ao uso de cores fortes, nas quais as mesmas só aparecem, eventualmente, com o objetivo de realçar, ainda mais, o clima sombrio que é comum a obra. 

             

Mesmo que Yara Martins de Oliveira tenha através da escolha que fez do caminho a trilhar, assumido o risco de entrar para o rol dos artistas "malditos", não aceitos nem compreendidos pelas pessoas do seu tempo, estou seguro de que ela, como muito poucas pessoas dotadas de superioridade espiritual, ira seguir sua trajetória, inabalável apesar de sua aparente fragilidade, sem qualquer risco de ser corrompida pelos encantos do sucesso fácil.

             

Que assim seja Yara

 

 

 

Fernando Velloso

Artista e Crítico de Arte membro da ABCA

 

Curitiba fevereiro de 2004                                                                                                       

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