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A PERSISTENTE E INCANSÁVEL ARTE DE YARA MARTINS


Exposta no Brasil e no exterior, a obra da artista visual Yara Martins é profunda e feita com vigor e paciência. Para ela, fazer sempre foi a parte mas importante do seu processo de criação.

 

Yara Martins (73) tem uma figura frágil e delicada. Cautelosa com sua privacidade, não gosta de falar de si. Prefere que seu trabalho o faça. É nele que concentra sua energia há mais de 40 anos. Não tem conta em rede social. Gosta mais do convívio, da conversa olho no olho. Quando isso não é possível, usa e-mail e WhatsApp, mas só para o essencial. É introspectiva por natureza e essa introspecção se deixa capturar em trabalhos de cunho intimista e carregados de simbolismo.

 

Seu ateliê ocupa parte do térreo de um prédio residencial bem próximo ao centro de Curitiba. Lugar aconchegante e bem iluminado que agora tem a missão de dar abrigo às mais recentes criações de seu espírito. Depois de anos às voltas em intenso processo criativo, Yara sente que agora sim tem algo novo para mostrar. É assim que gosta de fazer sua arte: com calma e de modo persistente; constante como as ondas do mar que não se cansam de ir ao encontro de praias, pedras e promontórios.

 

Se lhe pedem para definir o que está a fazer enquanto cria, dificilmente dará resposta precisa. Justamente porque acredita que fazer seja a parte mais importante do processo. “A necessidade que eu tenho é de fazer para depois descobrir”, explica. Ao final, talvez saiba dizer o que criou, talvez não. É um dilema que não a incomoda. Dar nome às coisas também não é sua prioridade. Criar, sim. Mesmo sem nomes, suas obras existem, pois toda forma precede a compreensão.

 

Yara começou a pintar relativamente tarde, aos 33 anos, sob a batuta de Fernando Calderari, que era então diretor da Escola de Música e Belas Artes do Paraná. Os dois se conheceram pouco antes, durante um curso de arte que fez na Galeria Cocaco. Na época, foi atrás dele e propôs, na cara e na coragem, que ele desse aulas particulares a ela e a pequeno grupo de mulheres interessadas.

 

No começo, ele negou. Mas ela não desistiu e desafiou: “Tudo bem. Se você me indicar alguém que dá aula como você, eu vou embora agora”, lembra de ter dito a um dos grandes pintores paranaenses. Depois de alguma insistência, ele aceitou. Mas com uma condição: que toda semana elas fizessem um quadro com ele e outro individualmente. “Se vocês levarem a sério, eu irei”, foi a resposta final.

 

Entre idas e vindas, foram quase dez anos de intenso estudo. As aulas aconteciam na casa que Yara possuía ao lado da qual morava com a família e que naquele momento estava vaga. Entre as estudantes estavam Guita Soifer, Maria Ivone Bergamini, Beth Pisani Maria e Marta Reichman, que se tornou sua grande amiga. Juntas, aprenderam, sobretudo, a importância da cor.

 

Calderari as incentivava a buscar suas próprias cores. Foi assim que surgiram as paisagens de céu escuro, por vezes negro, feito com pinceladas vigorosas. “Eu dizia para ele que estava faltando alguma coisa na minha cor. Ele respondia que estava bom, mas eu insistia que não, que estava achando a cor meio suja. Foi então que ele sugeriu colocar preto por baixo, para ver se limpava a cor. Foi a maior descoberta da minha vida!”, lembra.

 

Seu estilo singular chamou a atenção do jornalista Francisco Souto Neto, que escreveu sobre a exposição que ela realizou junto à Maria Martha Reichman, na Galeria Acaiaca. Na época, ainda assinava como Yara de Moraes. Em matéria para o Jornal Indústria e Comércio, de 1989, Souto Neto escreveu: “É impossível que, vendo a composição de Yara de Moraes, não nos sintamos momentaneamente aprisionados da fascinação que nos reporta às sombras do nosso próprio espírito.” Observação precisa e preciosa. O preto nunca mais a abandonou e quase se tornou marca registrada. Até hoje são inseparáveis. O mesmo não aconteceria com as paisagens.

 

Depois da exposição, foi como um se um ciclo chegasse ao fim. A partir daí, nada voltaria a ser como antes. “A abstração foi resultado de muito trabalho figurativo, ocorreu sem intencionalidade”, observa. O próprio Calderari chegou a lhe dizer que ela tinha achado a essência da paisagem. Resultado de muita dedicação de uma artista incansável.

 

Tempos depois, quando já havia passado pelo figurativo e pela abstração, se voltou para algo que parece habitar entre os dois. “É um figurativo, mas de outro jeito”, define, sem realmente definir. De fato, são sombras de figuras, figuras não inteiras. Resultado de exaustiva pesquisa que dialoga com toda a história da arte.

 

O professor e crítico de arte Fernando Bini a vê como como uma artista de grande seriedade e comprometida com a arte. “O que admiro na Yara é o comprometimento dela. Ela faz um trabalho sério, sem pressa. Um trabalho de busca, de pesquisa e de harmonia”, disse em interessante conversa que tivemos por telefone. “A vida do artista é isso, é procura”, completou. Também chamou atenção para a relação entre forma e textura em seus trabalhos e pensa que este talvez seja o seu período mais importante. “Ela decidiu sair do espaço da tela para que o observador não apenas olhe, mas também adentre suas criações”.

 

O processo que a levou a dar o salto para fora das telas começou com uma interdição. Depois de 35 anos se dedicando à pintura à óleo, principalmente de paisagens, e de alguns trabalhos com madeira, Yara sofreu complicações respiratórias. A indicação médica foi clara: se quisesse manter a saúde, não poderia mais pintar.

 

Perseverante como poucos, não desistiu. Buscou outros meios de se expressar. Veio então a ideia de usar o tecido como cor. Pintar com tecido e não sobre ele. Embora o resultado de tal imersão seja dos mais interessantes, não foi o suficiente para ela. Não conseguia as transparências e profundidades proporcionadas pela tinta a óleo. Pesquisou novos jeitos de usar o tecido. Arriscou novamente. No momento em que abriu mão das placas de madeira que serviam como telas, seus trabalhos ganharam vida nova e se verticalizaram. Transformaram-se em figuras quase totêmicas, com cores e texturas variadas.

 

“Eu gosto muito do que ela faz”, declarou a artista visual Jussara Age, grande conhecedora de técnicas variadas e dona de afiada intuição para obras de arte. “Essa verticalidade das obras mais recentes dela me remete à religiosidade”, argumentou com entusiasmo. “O vertical leva à Deus e o horizontal se liga mais à terra e à matéria. Quando a conheci ela fazia paisagens. Mas sempre paisagens com notas sutis, nunca com explosões de cores”.

 

Estela Sandrini, outra grande artista paranaense e amiga de longa data de Yara também se lembra das força das paisagens que marcam o início da carreira. Paisagens que, de acordo com ela, levam o observador ao estado de contemplação. Ela ressalta o profundo respeito de Yara não só pelo material com o qual trabalha, mas também por suas próprias ideias e pelas pessoas. “Em seu trabalho existe um respeito que não se limita ao religioso. Um respeito que chega a consagrar o que ela faz”.

 

Estela usa de exemplo a exposição que aconteceu no Museu de Arte do Paraná (MAP), ocasião em que Yara utilizou sacrários e pinturas que fundiam sagrado e profano e que “mostravam ao sagrado que o profano também é importante. Existe um código sagrado no trabalho dela”, revelou

 

O processo dos novos trabalhos começou com simples desenhos “automáticos”. Técnica utilizada principalmente pelos pintores surrealistas em que não se controla racionalmente o movimento da mão e do braço enquanto pinta, quase mecânico. Em outras palavras, não há formas pré-concebidas. Elas simplesmente vão surgindo. Inúmeros artistas fizeram uso desse tipo de composição, incluindo Miró, Dalí e Breton.

 

“Comecei com esses desenhos pequenininhos e fui desenhando sem parar, um atrás do outro”, explica, apontando para alguns esboços depositados sobre a mesa de trabalho”. Para ela, arte é algo que tem que sair de dentro da gente. “Quando comecei, não sabia o que estava fazendo. Depois, os rabiscos foram virando figuras e agora já sei o que são”, conta.

 

Seus traços foram adquirindo formas singulares, com mais curvas que os primeiros. À primeira vista, lembram figuras pré-históricas que remetem à Art Brut, de Jean Dubuffet, de quem guarda uma frase como um mantra pessoal: “Entre a pintura e eu, eu fico comigo”. Leu em uma entrevista dele e nunca mais esqueceu. Transformadas em objetos tridimensionais, exibem verdadeira energia primitiva, não guiada pelo raciocínio ou pela lógica. “São descobertas que vamos tendo depois de muitos anos de trabalho”, esclarece.

 

Passados alguns anos sem expor, por vontade própria, importante dizer, Yara Martins acredita que agora chegou o momento de deixar suas obras saírem de casa. “Toda vez que você faz uma exposição, parece que você encerra um ciclo. Quando eu tenho desejo de fazer uma exposição, é porque eu esgotei o que tinha para falar”, assegurou com ar tranquilo e despreocupado.

 

O que está por vir é uma incógnita, mas esperamos que, depois de tanto trabalho, pesquisa e investigação, ela tenha muito a nos dizer e, principalmente, mostrar. Como me disse Fernando Bini, sem esconder certo entusiasmo: sua obra precisa sair do ateliê.

Jocê Rodrigues

Curitiba, 2019

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